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ABC do Movimento Estudantil: O que é Federalismo?

É provável que você já tenha ouvido a palavra federalismo. E talvez não a tenha entendido. O que você precisa saber é que federalismo é uma forma de organização. Podemos dizer que é uma forma de organização política que foi defendida pelo movimento dos trabalhadores de duas maneiras.

A primeira é como forma de organizar a sociedade como um todo após a revolução. A segunda maneira é como uma forma de organizar as associações de trabalhadores para lutar no capitalismo e derrubá-lo. Neste texto, vamos ver o que cada uma delas significa. Veremos também a diferenciação entre federalismo e horizontalidade. Ao final, é apresentada uma lista de textos caso você queira aprofundar sua compreensão sobre o tema do federalismo.

Abaixo, segue um diagrama descrevendo as duas expressões do federalismo no movimento dos trabalhadores.

Figura 1: Duas expressões do federalismo no movimento dos trabalhadores

Federalismo como forma de organização da sociedade

Foi dito que o federalismo é uma forma de organizar a sociedade. Contudo, é preciso estabelecer uma diferença importante entre o que o republicanismo burguês e o movimento dos trabalhadores entendem por federalismo.

Para o republicanismo burguês, o federalismo é definido como um sistema de governo que consiste na associação de vários estados para formar uma nação, sem que cada um perca sua autonomia.

Um exemplo desse tipo é a República Federativa do Brasil, onde estados como Ceará, Paraná e Rio de Janeiro, entre outros, cada um com seu governo, estão associados e formam o Estado brasileiro. Nesta forma de federalismo, os trabalhadores tem sua “participação” política reduzida ao voto nas eleições municipais, estaduais e presidenciais. Não há nenhuma participação direta dos trabalhadores sobre as questões econômicas, como o valor do salário-mínimo, o preço da cesta básica, da gasolina, do aluguel de casas. As decisões econômicas assim como as políticas são tomadas por uma minoria pertencente a burguesia e a burocracia estatal.

A estrutura política do federalismo burguês pode ser visualizada no seguinte diagrama:

Figura 2: Estrutura política do federalismo político burguês

Para o movimento dos trabalhadores, o federalismo não diz respeito a união de estados, mas a própria destruição do Estado. Isto é, uma forma de organizar a sociedade sem o monopólio do poder exercido por uma classe capitalista ou burocrática.

O federalismo é uma forma de organizar a sociedade que garante aos trabalhadores participarem diretamente das decisões políticas (autogoverno) e econômicas (autogestão) da sociedade como um todo. Nas palavras de Bakunin, a “livre associação e federação dos trabalhadores, primeiro nas associações, depois nas comunas, nas regiões, nas nações, e finalmente numa grande federação internacional (…)”. (BAKUNIN, 2006, p. 88)

Esse federalismo proletário pode ser definido como um sistema de governo que consiste na associação de várias instâncias políticas de autogoverno e econômicas de autogestão distribuídas geograficamente e sob controle dos trabalhadores.

A Comuna de Paris (1871), na França, e a organização da política e da economia pela Confederação Nacional do Trabalho (CNT) durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) são exemplos de funcionamento de sociedades de acordo com o federalismo.

O federalismo proletário enquanto forma de organização da sociedade pós-revolucionária pode ser visualizado neste diagrama, baseado em Bakunin (2006):

Figura 3: Estrutura do federalismo político proletário baseado em Bakunin (2006)

Vimos que tanto o federalismo burguês quanto o federalismo proletário fazem referência a um tipo de organização política, mas a concebem de maneiras distintas, melhor dizendo, opostas.

O federalismo burguês é uma forma de governo centrada no Estado, funciona de cima para baixo. Os políticos profissionais e os capitalistas tomam as decisões que afetam toda a sociedade. Uma minoria decide o destino da maioria. É uma forma de estatismo, isto é, uma organização política baseada na manutenção e reprodução do monopólio do poder político. Combina-se com o capitalismo, isto é, com a propriedade privada dos meios de produção por uma elite burocrática ou capitalista.

O federalismo proletário é uma forma de autogoverno político e autogestão econômica baseadas nas associações de trabalhadores em diferentes escalas geográficas (município, província, região, país, mundo). O federalismo proletário funciona de baixo para cima. É uma maneira de evitar a monopolização do poder político e econômico nas mãos de uma elite qualquer e organizar a sociedade pela partilha do poder e da riqueza. É o verdadeiro federalismo.

Figura 4: Diferenças básicas entre federalismo burguês e federalismo proletário

Federalismo como forma de organização para a luta de classes

Vimos que para a classe trabalhadora, o federalismo é uma forma de organizar a sociedade como um todo após a revolução que derrubará o capitalismo e o estatismo. Contudo, o federalismo também é um tipo de organização dos trabalhadores para lutarem no contexto da sociedade capitalista.

Essa forma de organizar as associações de trabalhadores para a luta de classes foi delineada por Mikhail Bakunin no contexto da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), também chamada de Primeira Internacional.

Para Bakunin, a tarefa dos trabalhadores era formar sociedades de resistência (o que hoje chamaríamos de sindicatos) para agrupar a classe como um todo, de maneira nacional e internacional, em uma associação proletária para a luta contra os patrões e o Estado. Nessa luta, as massas trabalhadoras adquiririam experiência de organização e confronto com os capitalistas e o seu aparato repressor de Estado. A revolução seria resultado de uma greve geral expropriadora dos meios de produção (terras, fábricas) da burguesia. Estes seriam colocados sob o controle dos trabalhadores e não sob o controle de um outro Estado.

O federalismo como uma forma de organização proletária para a luta de classes nasce do setor bakuninista da Associação Internacional dos Trabalhadores. Ele será desenvolvido na Europa, Ásia, África, Oceania e América Latina entre o final do século XIX e início do século XX por dezenas de associações e federações de trabalhadores, a exemplo da Confederação Operária Brasileira (COB), da Confederação Geral do Trabalho (CGT) na França, da Confederação Nacional do Trabalho (CNT) na Espanha, da Industrial Workers of the World (IWW) dos EUA, entre outras.

Essa forma federalista dos trabalhadores se auto-organizarem para a luta de classes é diferente da forma burocrática adotada pela socialdemocracia e algumas correntes comunistas ao longo da história do movimento proletário.

Na forma burocrática de organização dos trabalhadores, as decisões são centralizadas por um pequeno núcleo de dirigentes e as ações são realizadas pela base dos trabalhadores. Esses dirigentes tomam decisões à margem da base ou a consulta de maneira superficial apenas para manter uma aparência de processo “democrático”. Um exemplo disso no Brasil é o que faz a Central Única dos Trabalhadores (CUT) no movimento sindical e o que faz a União Nacional dos Estudantes (UNE) no movimento estudantil.

Na forma de organização federalista da classe trabalhadora, a base é quem decide e quem age. As decisões são descentralizadas, isto é, cada núcleo de trabalhadores de uma determinada organização, participa da tomada de decisão. A ação é centralizada, isto é, todos os núcleos de trabalhadores que participaram da decisão irão agir de acordo com o que foi decidido.

Um exemplo: toda a federação de trabalhadores da educação debate se irá participar ou não de um protesto contra a precarização do trabalho nas escolas. Cada núcleo de trabalhadores da educação participa do processo de decisão. Este é o momento de tomada de decisão (ele é descentralizado). Suponhamos que a decisão tenha sido participar do protesto. Assim, todos os núcleos participarão do protesto. Este é o momento de ação (ele é centralizado). Mesmo aqueles núcleos que tenham decidido não participar do protesto irão participar, porque numa federação o momento de decisão é descentralizado, mas o momento de ação é centralizado, isto é, toda a federação age em comum. Esse é o sentido e a vantagem da federação, decidir democraticamente, agir coletivamente. A federação é uma força coletiva de organização e ação dos trabalhadores na luta contra os patrões e o Estado.

A diferença entre horizontalidade e federalismo

É comum confundir horizontalidade com federalismo. Contudo, esses termos possuem origens históricas e aplicações políticas diferentes.

O federalismo proletário origina-se com os trabalhadores europeus do século XIX que se organizaram de acordo com os princípios da ala federalista ou antiautoritária da Associação Internacional dos Trabalhadores, encabeçada por Bakunin e os bakuninistas. Esse federalismo deu origem ao sindicalismo revolucionário na passagem do século XIX para o XX, sendo desenvolvido por trabalhadores racializados e de diversos gêneros na África, Oceania, Ásia e América Latina. Nesses diversos lugares, a forma federalista rivalizou e disputou a consciência e a organização dos trabalhadores com os modelos burocráticos dos sindicatos socialdemocratas ou os modelos autoritários dos partidos marxista-leninistas.

A noção de horizontalidade origina-se de forma diferente. Ela surge das discussões do movimento feminista nos Estados Unidos da América durante os anos 1960-1970. E foi concebida como uma forma de organizar coletivos de mulheres para fazer a luta feminista na sociedade patriarcal-capitalista. Assim, ela é uma forma de organização feminista que não possui as mesmas hierarquias dos partidos marxista-leninistas (no qual o comitê central do partido decide o que o militante da base deve fazer). Contudo, a horizontalidade tal como foi concebida naquele contexto por aquelas mulheres, não se referia a um projeto de organização da sociedade como um todo, mas a organização de coletivos para a luta anti-patriarcal.

O termo horizontalidade ganhou sobrevida com o movimento antiglobalização da passagem dos anos 1990 para os ano 2000, quando o fim da União Soviética redirecionou o ativismo político a buscar outras formas de organização das lutas sociais que fossem diferentes do modelo do partido socialdemocrata ou marxista-leninista.

Ao desconhecer as diferentes origens do federalismo e da horizontalidade, acaba-se confundido eles. O federalismo concebido e praticado pelo movimento dos trabalhadores é uma prática política mais abrangente tanto em termos históricos quanto organizativos, porque envolve não apenas uma forma de organizar a luta dos trabalhadores na sociedade capitalista visando derrubá-la, mas se refere a um projeto de reorganização de toda a sociedade após a revolução. Enquanto a horizontalidade refere-se a práticas de não hierarquização dentro de um grupo de pessoas, não estando esse grupo necessariamente em contato com outros grupos de pessoas dentro de uma estrutura federativa de organização. Pode-se, inclusive, dizer que o próprio modelo federalista de organização dos trabalhadores para a luta de classes já era “horizontal” antes da horizontalidade ter sido inventada pelas feministas dos anos 1970, pois o federalismo proletário é baseado na democracia de base.

Leituras para aprofundar a discussão:

BAKUNIN, Mikhail. A Comuna de Paris e a noção de Estado. Verve, nº 10, 2006, pp. 75 – 100. Acesso em 14 de setembro de 2023.

BRAY, Mark. Uma crítica anarquista do horizontalismo. Biblioteca Anarquista. Acesso em 14 de setembro de 2023.

DA FONSECA MATEUS, João Gabriel. De baixo para cima, da periferia ao centro: O federalismo de Mikhail Bakunin. Acesso em 14 de setembro de 2023.

FREEMAN, Jo. A tirania das organizações sem estrutura. 1970. Coletivo de Estudos Anarquistas Domingos Passos. Acesso em 14 de setembro de 2023.

Proudhon, Pierre-Joseph. Do Princípio Federativo. Editora Imaginário. São Paulo, 2001. Acesso em 14 de setembro de 2023.

ZILIO FERNANDES, R. O princípio federativo: um projeto político-espacial alternativo à lógica do estado moderno. Boletim Goiano de Geografia, Goiânia, v. 38, n. 2, p. 276–296, 2018. DOI: 10.5216/bgg.v38i2.54619. Acesso em: 14 set. 2023.

Slides ABC do Movimento Estudantil: O que é Federalismo?

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